sexta-feira, abril 19

Eles e nós

 

Ao nascer do dia passam curvados, sacho ao ombro, num andar lento e comedido que lembra o dos lapões e dos tibetanos, que por pequeno que seja nunca levantam os pés sobre um obstáculo, mas o rodeiam, a poupar energia para a jornada e a tarefa.
Estão a chegar ao fim da velhice, há muito esqueceram as alfaias que lhes pareceram modernas e mais que precisas, mas agora enferrujam no cabanal, o atrelado a servir de capoeira, os pneus vazios, as pitas a chocar no assento do tractor.
Meia dúzia de anos, se tanto, iludiram-se com as novidades, aprenderam a usar isto, aquilo, mas o atavismo e o tempo breve se encarregaram de lhes fazer ver que não era esse o caminho. Infelizmente não havia retorno, e quando deram conta já os anos lhes tinham gastado as forças.
Mas só a morte os há-de parar. É assim que todas as manhãs, tornados autómatos pelo  instinto milenário, vão a caminho da tarefa inútil de plantar batatas que não precisam, couves que ninguém quer, gastando o que lhes resta de força na poda e na cava das oliveiras.
A sua presença impõe respeito. há neles algo de primitivo e natural que nós outros perdemos. nós, os que vamos existindo, sem raízes nem mistério que nos empurre.

 

quinta-feira, abril 18

O mulo

 

Invólucro ou suporte, como agora se diz, no meu corpo acomo-
dam-se uns quantos eus, entre os quais um que deve ter nascido ve-
lho, sofreu engano no fabrico, ou passou por tantas reencarnações que
a visão que tem do ambiente em que vive e da gente com quem tra-
ta é tudo menos cómoda.
Suporta mal a falta de franqueza, é impaciente para com ro-
deios, sobe nele um azedume ao dar conta de que o tratam com ha-
bilidades, com jeitos, lhe mentem, tentam dar volta à sua maneira
de ser. Quando isso sente pronto se abespinha, não há poder que en-
tão o demova, ganha uma teimosia de mulo e, como cabe ao género
muar, nem cevada nem palha o atraem, menos ainda será alguém
capaz de com açoites o fazer mudar.